Há uns anos a esta parte que mantenho, de forma tão sistemática quanto me é profissionalmente possível, uma rotina solitária - misantrópica e doentia diriam alguns - que me ocupa a quase totalidade da hora de almoço. À custa desse hábito consegui anular quase por completo os convites dos colegas de trabalho para os acompanhar durante a refeição, cansados das recusas sucessivas e mais ou menos inconsistentes. Resolvo apressadamente, e com frequência de forma negligente, a questão alimentar propriamente dita e sento-me, dentro do carro, à coberta de uns plátanos (seria mais poético se fossem outras árvores, menos comuns e urbanas, bem sei, mas é a triste realidade). Tiro o livro da mochila e embarco na luta de tentar abstrair-me o suficiente para usufruir do momento, enquanto mecanicamente vou verificando o relógio para não me atrasar.
Foi mais ou menos neste contexto que me encontrei hoje, mas desta feita com o computador portátil sobre os joelhos, pronto para começar a escrever este artigo. Acendi um cigarro e pensava atirar-me de forma crítica à deprimente falta de público que assola parte dos espectáculos na cidade ou então elogiar o trabalho das associações e programadores que, apesar da dificuldade em obter apoios, insistem em promover iniciativas de qualidade.
Nunca o cheguei a fazer. A poucos metros de onde me encontrava, uma família de ciganos rondava uma carrinha branca, suja e picada de ferrugem. Enquanto o chefe de família habilmente fazia crescer do chão cestas de verga em série, a um ritmo acelerado, a cigana lavava, numa água absolutamente opaca, pedaços de tecido vagamente semelhantes a peças vestuário. Ali por perto, dois miúdos (o mais pequeno ainda com um andar cambaleante de quem apenas há uns meses começou a andar) interrompiam ciclicamente as brincadeiras com o triciclo de duas rodas para abordar os transeuntes, braço estendido e voz chorosa.
Perdi-me no raciocínio quando ia dissertar sobre o acesso universal e democratizado à cultura e na necessidade de reeducar os públicos; sobre a profusão de informação disponível e de como é virtualmente impossível não usufruir, ainda que parcialmente, da enorme oferta cultural da cidade... Acho que vai ter de ficar para outro dia.
19.II.2009