4 de maio de 2009

acho que vai ter de ficar para outro dia...

Há uns anos a esta parte que mantenho, de forma tão sistemática quanto me é profissionalmente possível, uma rotina solitária - misantrópica e doentia diriam alguns - que me ocupa a quase totalidade da hora de almoço. À custa desse hábito consegui anular quase por completo os convites dos colegas de trabalho para os acompanhar durante a refeição, cansados das recusas sucessivas e mais ou menos inconsistentes. Resolvo apressadamente, e com frequência de forma negligente, a questão alimentar propriamente dita e sento-me, dentro do carro, à coberta de uns plátanos (seria mais poético se fossem outras árvores, menos comuns e urbanas, bem sei, mas é a triste realidade). Tiro o livro da mochila e embarco na luta de tentar abstrair-me o suficiente para usufruir do momento, enquanto mecanicamente vou verificando o relógio para não me atrasar.

Foi mais ou menos neste contexto que me encontrei hoje, mas desta feita com o computador portátil sobre os joelhos, pronto para começar a escrever este artigo. Acendi um cigarro e pensava atirar-me de forma crítica à deprimente falta de público que assola parte dos espectáculos na cidade ou então elogiar o trabalho das associações e programadores que, apesar da dificuldade em obter apoios, insistem em promover iniciativas de qualidade.

Nunca o cheguei a fazer. A poucos metros de onde me encontrava, uma família de ciganos rondava uma carrinha branca, suja e picada de ferrugem. Enquanto o chefe de família habilmente fazia crescer do chão cestas de verga em série, a um ritmo acelerado, a cigana lavava, numa água absolutamente opaca, pedaços de tecido vagamente semelhantes a peças vestuário. Ali por perto, dois miúdos (o mais pequeno ainda com um andar cambaleante de quem apenas há uns meses começou a andar) interrompiam ciclicamente as brincadeiras com o triciclo de duas rodas para abordar os transeuntes, braço estendido e voz chorosa.

Perdi-me no raciocínio quando ia dissertar sobre o acesso universal e democratizado à cultura e na necessidade de reeducar os públicos; sobre a profusão de informação disponível e de como é virtualmente impossível não usufruir, ainda que parcialmente, da enorme oferta cultural da cidade... Acho que vai ter de ficar para outro dia.


19.II.2009

saudade

Abrir uma garrafa de vinho. Daquelas guardadas para ocasiões especiais.
Ouvir os teus conselhos e esquecer o tempo e esquecer o vinho que respira ao pé da lareira acesa, porque deixou de ser importante.
E sentir-me pequeno e descuidado e inseguro e não me preocupar com nada disso, porque estou contigo e quando assim é, nada há a temer.
Saudades... muitas saudades tuas, companheiro.


10.X.2008

sedução

- És uma sedutora!...

Ela não retorquiu. Deixou o silêncio crescer e ocupar espaço entre os dois, depois atravessou-o para alcançar o outro lado da mesa e tirar um cigarro do maço dele, sem o pedir. Acendeu-o e por momentos, após libertar a primeira baforada de fumo, pareceu tentada a falar. Ao invés...sorriu. Aquele sorriso lânguido e cínico que apenas quem esbanja elogios, por lhe sobejarem, consegue exibir.

Olhou-a nos olhos, brilhantes, fogosos. Ainda o mesmo misto de temeridade e inocência esquecida. Nele, a impressão de sentir a alma revirada e uma compulsão para suster a respiração por tempo indeterminado.

Baixou os olhos para o maço e serviu-se também ele de um cigarro. Bateu-o na mesa, três ou quatro vezes e levou-o aos lábios para o acender. Suspendeu o gesto, em pleno ar, e tornou a encará-la. Ela abandonou o sorriso e inclinou ligeiramente a cabeça, indagadora.

Num impulso, levantou-se. Repôs o cigarro no maço e afastando uma melena, pousou-lhe suavemente um beijo na fronte.

- E um doce... mas isso já tu sabes.

Agarrou no saco de viagem e deixou uma nota em cima da mesa, deixou a esplanada do café e deixou-a a ela, como quem guarda, esquecida, uma velha fotografia numa caixa.


3.X.2008

sonho de uma noite de verão

O fim do solo do Miles traz-me de volta à realidade, imerso na luz suave espalhada pelo candeeiro no canto da sala. Na rua é de noite. Cá dentro lembro-me do vinho no decantador.

Não sei há quanto tempo estás assim, olhando para fora, a silhueta recortada contra a janela aberta por onde vai entrando uma brisa quente talvez por causa dos fogos de Agosto... ainda que eu desconfie que é o contacto com o teu corpo que a aquece.

Sinto-te um ligeiro estremecer quando ouves o som do vinho a cair no copo, mas manténs-te de costas voltadas, olhos no firmamento (ou será ao contrário?). Não te consigo ver o rosto, por isso prefiro acreditar que estás a sorrir.

Humm... perfeito. Este vinho sabe-me a tranquilidade.


12.IX.2008

e se depois?

Foi imediatamente após desligar o telefone que fui assaltado pelo discernimento. Revólver em punho, completamente sem receio. Nem máscara de esqui nem meia de nylon, assim mesmo, de cara descoberta.

O que julgas que estás a fazer?

Hás-de ter muito a ver com isso! De qualquer das formas, já é tarde demais!

Sem lhe dar tempo de engatilhar, fui directo ao pescoço, dentes na jugular. E arrumei ali mesmo a questão, de uma vez por todas...


16.VII.2008

do estado da ciência

Anda desde ontem às volta na minha cabeça uma notícia (ou será que alucinei? -- não encontro fontes em lado nenhum), daquelas para preencher espaço morto no telejornal, referindo um estudo científico(?), acerca da relação entre a predisposição e estado de espírito para enfrentar o dia e o lado da cama usado para nos levantarmos.
De acordo com o referido estudo, levantar da cama pelo lado esquerdo estará associado a emoções positivas e auto-confiança, ao passo que fazê-lo pelo lado direito provocará ao longo do dia situações de stress e medo (sim... medo!).

Não estranhei, portanto, quando ontem à noite, ao passar no vão de escada do prédio, ouvi o tom de voz elevado dos casais em acesa discussão acerca de trocas do lado da cama, e as consequentes mudanças de conteúdo das mesinhas de cabeceira, gavetas abrindo e fechando em sequência, até às tantas da manhã. Tampouco estranhei o burburinho de gemidos abafados que, esta manhã, se iam escapando dos acessos de sexo fortuito dos que, tendo optado por não trocar de lado da cama, se viram na necessidade de rebolar sobre o companheiro para conseguir sair pelo lado "certo", e não resistiram ao que a natureza tem de melhor.

Estudo científico? Mas estes gajos não deviam andar à procura da cura para a SIDA, ou de uma forma de eliminar a acumulação de dióxido de carbono?


14.I.2008

conversa de café

"Cátia, quero um café e um sonho para a mesa 3!"

Traga-me o mesmo para esta mesa, por favor...
...sem o café!


10.I.2008